“Até que tornes o inconsciente consciente, ele vai dirigir a tua vida e vais chamar-lhe destino.”

Traduzido do orginal por Jung. C. G.


SOMBRA


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Alguns conceitos antes de começar:

  • Neuroplasticidade – os neurónios e as redes neuronais (não apenas o cérebro, mas todo o sistema nervoso) têm a capacidade de modificar as suas conexões e comportamento de acordo com novas informações, estimulação sensorial, desenvolvimento, pensamentos, emoções, danos ou disfunções. A neuroplasticidade substituiu a anterior teoria de que o cérebro é um órgão fisiologicamente estático e que não se desenvolve mais depois dos primeiros anos de vida. Tudo o que experimentamos, tanto positiva quanto negativamente, molda e transforma a nossa mente e corpo. É considerada uma propriedade complexa, multifacetada e fundamental do sistema nervoso.

  • Integração – o processamento neuronal de novas informações e a sua resposta-efeito.

  • Trigger – pessoa ou situação que produz uma reação emocional a um nível profundo. Pode ser positivo, mas temos tendência a notá-lo mais facilmente quando é negativo, manifestando-se em sensações como crítica, julgamento, raiva, baixa autoestima, tristeza, ciúme, etc. Os triggers são vitais no processo de expansão de consciência e cura, pois constituem espelhos do que precisa ser desbloqueado, curado e integrado em nós.

  • Vulnerabilidade – de acordo com Brené Brown, experienciamos vulnerabilidade quando sentimos algum tipo de risco emocional, exposição ou incerteza.

  • Trauma – resposta neuronal a um evento emocionalmente stressante que inibe a capacidade de expressão e evolução de um indivíduo, criando bloqueios e condicionamentos a um nível subconsciente, diminuindo a perceção de si próprio e incorporação de um largo espectro de emoções e experiências. Pode ser causado por antecedentes culturais, pelos pais ou outros familiares, por amigos, por mudanças repentinas na vida, entre outros. Neste post, não me vou referir a perturbação de stress pós-traumático (PSPT), pois trata-se de uma condição psiquiátrica específica, muitas vezes causada por experiências violentas, que pode beneficiar de aspetos que vou partilhar, mas que deve ter um acompanhamento clínico adequado.


1. O QUE É A NOSSA SOMBRA?

Vamos começar com a pergunta – sabes realmente quem és?

Talvez já tenhas percebido em posts anteriores que eu gosto de papel. Convido-te então a pegar numa caneta e num pedaço de papel e a tentar descrever-te em algumas palavras. Quais são as qualidades que te vêm à cabeça? Alguma característica menos virtuosa? Algo que gostarias de melhorar ou mudar?

Agora, experimenta lembrar-te daquela sensação de arrependimento imediato depois de uma resposta impulsiva. Já pensaste, "Por que raio disse eu aquilo?!, depois de teres agido movido por uma força que não compreendes muito bem? Ora, esse ponto obscuro, esse comportamento incompreensível e aparentemente fora do teu controlo, mostra que não estás consciente de algumas partes de ti.

Como crianças, nascemos completos e suficientes na plenitude humana, capazes de incorporar a expressão de qualquer característica ou aspeto. À medida que crescemos, começamos a desenvolver-nos, motivados pela procura de amor e apreciação dos mais próximos, adaptando-nos ao mesmo tempo às condições ambientais e culturais. Neste processo tortuoso e exigente, suprimimos partes de nós para satisfazer as necessidades fundamentais de intimidade, afeto, respeito e reconhecimento por quem somos e por quem nos vamos tornando ao longo das diferentes fases de crescimento.

Para "encaixar" na sociedade e alcançar o sentimento de pertença ao mundo externo, remodelamos o nosso mundo interno, deixando alguns traços da nossa essência escondidos no subconsciente – a nossa sombra. Este mecanismo é responsável pela criação de dolorosos padrões comportamentais e emocionais que frequentemente perpetuamos ao longo da vida. Sem sequer nos apercebermos que estes padrões existem, eles influenciam a nossa realidade e a forma como "dançamos" com o universo. Por outras palavras, afetam as escolhas que fazemos ao longo da vida e, consequentemente, como a vida se nos apresenta de volta. Vamos perceber como isto acontece no ponto 3.

O termo "sombra" foi descrito por Carl Gustav Jung (psiquiatra e psicanalista, fundador da psicologia analítica) como tudo o que a pessoa não está totalmente consciente acerca si própria – os aspetos da personalidade com os quais o indivíduo consciente não se identifica. Compreende características que rejeitamos através da dor, vergonha e condicionamento educacional, social e cultural, ou qualquer outro evento que tenha dado origem a sentimentos de baixa autoestima, gravados ao nível do subconsciente ao longo do nosso desenvolvimento.

Na verdade, a sombra pode incluir tudo o que se encontra fora da luz da consciência. Pode ser positivo ou negativo, mas como tendemos a rejeitar os aspetos menos desejáveis da nossa personalidade, a sombra permanece em grande parte negativa.

Incapazes de incorporar os nossos lados menos agradáveis, limitamos a nossa ação e expressividade. Esta defesa da mente é, frequentemente, o que nos inibe de evoluir, nos mantém pequenos, e nos impede de acreditar no nosso próprio potencial.

Há, no entanto, aspetos positivos que também podem permanecer escondidos na sombra, como por exemplo, a sensibilidade, a coragem ou a criatividade.

"A sombra é aquela personalidade oculta, reprimida, na maior parte inferior e carregada de culpa, cujas ramificações remontam ao reino dos nossos antepassados animais... o homem inconsciente, que é a sua própria sombra, não consiste apenas em tendências moralmente repreensíveis, mas também revela uma série de boas qualidades, tais como instintos normais, reações adequadas, insights realistas, impulsos criativos, etc."

(Traduzido do original Collected Works of C.G. Jung, 1994)

A descrição inicial que fizeste de ti é possivelmente a tradução de como o ego (a personagem dentro de ti que age e pensa, "talhada" pelos sistemas de valores e crenças) se vê a si próprio. Como a tua mente perceciona quem tu és. Ou talvez, algumas das coisas que escreveste tenham vindo do coração, ou de outro sítio que não sabes bem explicar, e que a tua mente não reconhece. Há alguma característica que suspeites ser verdade, mas que nem sequer és capaz de admitir em papel? Aí, talvez estejas a tocar num dos teus aspetos "sombra".

O ego procura manter-nos seguros, dentro da realidade e das regras que conhece, livre de imprevistos e do risco de falhar. Quando estamos excessivamente identificados com o ego, permitimos a sabotagem do potencial que reside no nosso subconsciente. Como?

Quando estabelecemos uma intenção consciente (como por exemplo, iniciar uma conta poupança), processos inconscientes de resistência ao desconhecido surgem e impedem-nos de avançar com essa intenção (acabamos por gastar todo o ordenado). A mente resiste à mudança, mesmo que ela pareça positiva.

Esta auto-sabotagem constitui a resposta à rejeição involuntária de partes de nós. Pegando no mesmo exemplo, eu posso querer fazer uma poupança mas na verdade, como sempre vivi com base em crenças como, "os ricos continuam sempre ricos e os pobres sempre pobres", ou "ser ganancioso é mau", ou ainda "o dinheiro não trás felicidade", sem me aperceber acabo por rejeitar sistematicamente aspetos que me pertencem – ser gananciosa, ambiciosa ou materialista. Esta rejeição involuntária impede-me não só de agir mas, a um nível emocional, até de acreditar que seja possível para mim viver em maior abundância financeira.

Se conseguirmos identificar estes padrões de auto-sabotagem, conseguimos transformá-los em ferramentas úteis, pois dirigem a nossa atenção para o que está escondido no subconsciente.

Enquanto resistirmos em reconhecer estes aspetos, o personagem individual criado pela nossa mente continuará a projeta-los noutras pessoas, coisas e situações.

Tudo o que nos irrita sobre os outros pode levar-nos à compreensão de nós mesmos.
— (Traduzido do original, por Jung C. G.).


2. PROJEÇÕES

Vemos nos outros o que não reconhecemos em nós – o aspeto de nós próprios visto como alguma forma de inferioridade é normalmente identificado como uma deficiência moral noutra pessoa. Alguns exemplos:

  • Ficas irritado quando alguém é rude – provavelmente não reconheces a tua própria aspereza. Caso contrário, a rudez da outra pessoa não te incomodaria tanto.

  • Achas ridícula a roupa de outra pessoa – há algo na forma como essa pessoa se apresenta que também tens em ti. Ainda assim, ainda não foste capaz dessa integração (como, por exemplo, a confiança para vestir o que queres, independentemente do que os outros possam pensar).

  • Sentes-te invejoso por um artista ganhar dinheiro com as suas pinturas – talvez gostasses mais de ganhar dinheiro a exercer uma atividade por paixão em vez do trabalho que tens; este trigger está a apresentar-se para te lembrar do teu verdadeiro potencial; talvez tenhas um poder criativo incrível que está a ser reprimido e apenas à espera de saltar cá para fora.

Muitas vezes atraímos o que negamos à nossa autenticidade. Por exemplo, se não gostarmos de pessoas presunçosas, pode acontecer que as atraímos frequentemente para a nossa realidade como um convite para integrarmos esse aspeto de nós próprios – onde ainda não nos sentirmos seguros ao ser arrogantes, confiantes ou vaidosos.

Este processo não acontece conscientemente. Normalmente, não nos apercebemos das projeções que fazemos.

Perguntas para te ajudar a detetar as tuas sombras em qualquer momento*:

  • Estás a criticar/julgar alguém ou alguma coisa?

  • Estás a sentir vergonha ou embaraço?

  • Sentes inveja ou ciúmes de alguém?

  • Tens medo que uma determinada característica te possa tornar menos amado, apreciado ou desejado?

Estas situações e as pessoas que as provocam são nossos professores. Eles guiam a nossa atenção e consciência para os aspetos que mais precisamos de integrar em cada momento das nossas vidas, para que nos possamos tornar melhores versões de nós próprios.

3. COMO A SOMBRA AFETA O COMPORTAMENTO E A REALIDADE QUE CRIAMOS?

Quando alguém te pergunta, "Porque tens medo disto?" ou "Porque reages assim sempre que uma pessoa faz isso?" e a tua resposta é "Não sei", significa que não estás a par de fragmentos que têm autoridade em ti e nas escolhas que fazes – cada fragmento (mesmo aqueles que não vês) é como um voto na criação da tua realidade.

Cada indivíduo tem o poder de moldar a realidade que vive. A nossa experiência de vida é influenciada não só pela forma como nos percecionamos individualmente e ao mundo, mas também pela forma como decidimos atuar sobre ela. É um processo dinâmico em que forças internas e externas condicionam a nossa capacidade de aprendizagem e a criação novas integrações neuronais. Por sua vez, estas novas integrações vão direcionar o curso das ações que modificam a realidade vivida.

Um exemplo simples e prático de uma integração positiva da sombra e consequente mudança de realidade poderia ser:

  • Auto-percepção: Acho que sou péssimo a desenhar. Na escola, costumava ouvir que "não era para as artes". Sempre me vi mais como um tipo de ciências.

  • Projeção da sombra/trigger: Sempre que vejo um artista de rua, tenho uma sensação mista de inveja e crítica. À primeira vista parecem tão leves, serenos e fluídos no seu ofício. Mas... Como é que esta gente pode ter uma vida assim? Certamente não têm contas para pagar como eu tenho!

  • Fatores e experiência exterior: Um dia, li esta frase num livro, "Desfrutar ou criar beleza é um ato livre, e algo a que todos os seres humanos têm acesso." Algumas semanas depois, desafiado por um colega de trabalho, participei de um workshop de team-building onde nos pediram para fazer um desenho livre após uma meditação profunda. Aquilo era tudo novo para mim, mas acontece que o meu desenho foi aplaudido por todos os outros participantes.

  • Experiência interna e integração emocional: Ler aquela frase no livro foi como ler uma verdade universal, como ouvir o som do mar pela primeira vez. Nunca pensei na arte como algo a que qualquer um pudesse ter acesso. Depois, tudo o que aconteceu no workshop foi surpreendentemente agradável e fez-me sentir leve e fluido. Fiquei espantado com o prazer de criar algo com materiais tão simples como carvão e papel.

  • Integração da sombra e ação: percebi que podia criar arte e, de facto, senti-me imensamente feliz ao fazê-lo. Depois disso, decidi frequentar um curso de desenho para desenvolver as minhas capacidades técnicas.

  • Alteração da realidade: Passados alguns meses, já estava a acompanhar o ritmo dos colegas com mais experiência e a participar na exposição anual da galeria.

A forma como percecionamos o mundo e como escolhemos agir sobre ele é influenciada por cicatrizes do passado – as raízes das nossas sombras. Isto significa que muitas das decisões que tomamos e a forma como vivemos as nossas vidas são filtradas por uma parte de nós que nem sequer estamos conscientes.

Ao viver desta forma, oferecemos o nosso poder de criação às pessoas, situações ou traumas do nosso passado. Vivemos ao sabor das regras impostas por acontecimentos que, na maior parte das vezes, já nem sequer são verdadeiros.

No exemplo acima, a pessoa acreditava que não era capaz de desenhar porque lhe foi dito na sua infância que era muito melhor na área das ciências. Na busca de apreço, e sob o efeito do condicionamento inconsciente (como um feitiço de "Proteção da Rejeição!"), esta pessoa desenvolveu as suas habilidades científicas e manteve as suas capacidades artísticas trancadas no baú da sombra.

O aspeto suprimido de "ter prazer em desenhar e ser bom nisso" foi colocado sob as camadas infinitas do personagem criado pela mente. Ele pode até ter feito imensos desenhos quando era criança, mas já nem sequer se lembrava porque foi limitado na perceção de si próprio através das falsas crenças impressas em criança (e eventualmente reforçadas na adolescência).

Neste exemplo em particular, a mudança mental e a integração da sombra aconteceram inconscientemente e sem uma intenção direta, o que me leva a falar um pouco sobre a complexidade destes processos.

Apesar da neuroplasticidade estar frequentemente associada a mudanças e transformações positivas, é também a "flexibilidade da interação entre o cérebro, o sistema nervoso e o ambiente que nos leva aos comportamentos aditivos. Quando existe uma força para manter um determinado hábito e qualquer tentativa para o quebrar falha, é o poder dos caminhos neuronais já existentes que estão tão vincados e nos fazem sentir seguros que nos mantém presos ao mesmo padrão comportamental" (traduzido do original por, L. Irene, 2015).

De facto, desejar mudar de atitude não é suficiente. Quando operamos totalmente distanciados da observação consciente, é comum cairmos nos mesmo padrões uma e outra vez.

A boa notícia é que podemos agir deliberadamente sobre estes mecanismos para expandir a nossa perceção individual e manifestar as coisas que queremos na vida, em vez de reforçar a narrativa negativa do nosso cérebro inconsciente.

Neste momento, tento abraçar o processo de reconexão com o subconsciente e reformulação da experiência de vida através das seguintes etapas:

A - Ao desenvolver a capacidade de auto-observação consciente (a minha tradução do termo inglês self-awareness), começamos a desidentificar-nos da imagem individual criada pela mente, e a ocupar o assento do observador, aprendendo como os aspetos da sombra afetam a nossa interpretação dos acontecimentos e o nosso comportamento;

B - Então, precisamos aceder e incorporar conscientemente as crenças limitantes responsáveis pelos sentimentos de baixa autoestima e a energia em torno dessas crenças, que viveram fora da nossa perceção por tanto tempo;

C - De seguida, substituir essas antigas vias neuronais por novas, integrando crenças alternativas no subconsciente através de repetição e consistência.

Curar e integrar as nossas sombras envolve mais do que enganar o cérebro com exercícios trendy e meditações calmantes – este processo requer um olhar atento e observador sobre todas as interações que temos na vida. Não apenas fora (entre nós e o que nos rodeia), mas também por dentro (entre nós, o nosso corpo e a mente pensante). É um processo multifacetado e altamente individual.

E não. Infelizmente, este não é um programa de 3 passos, simples e rápido. O cérebro, como bem sabes, é um órgão monstruoso com 90 bilhões de neurónios que comunicam entre si e se conectam ao resto do corpo, formando uma elaborada teia elétrica com 7 triliões de nervos.

Isto pode não ser novo para ti, mas nosso corpo "keeps the score" ** (faz o registro) de todas as nossas experiências. O que significa que retém muito do condicionamento emocional e do trauma experienciado ao longo da vida. Por este motivo é muito importante incorporar algum trabalho corporal ao longo desta jornada. Vamos ver como isto acontece.

De acordo com Carl Jung, a projeção da sombra é sempre acompanhada por uma carga emocional, implicando o envolvimento do sistema límbico. O sistema límbico é a parte do cérebro envolvida nas nossas respostas comportamentais e emocionais, e está quase totalmente desenvolvido atingimos os seis anos. Antes dessa idade, as necessidades emocionais correspondidas e não atendidas, bem como as experiências positivas e negativas correspondentes, têm um enorme impacto na formação do resto do cérebro e no desenvolvimento do nosso corpo.

Por outro lado, os nossos instintos de sobrevivência são regulados pelo sistema nervoso autónomo (SNA), particularmente, pelo sistema nervoso simpático. Este precioso sistema autónomo está profundamente enraizado no nosso subconsciente e é conhecido por nos manter a salvo de ameaças, ativando reações de luta ou fuga e congelamento.

Estes instintos de sobrevivência podem levar o sistema nervoso, cérebro e órgãos internos a um estado de hiper-alerta ou modo de bloqueio (aumentando a pressão arterial, a frequência cardíaca e os níveis de açúcar no sangue). Estes sistemas são cruciais quando estamos sob ameaças à nossa integridade física, como quando uma árvore está a cair sobre as nossas cabeças ou quando um leão nos persegue. Mas a verdade é que nas sociedades modernas, este tipo de ameaças reais, supostamente de curta duração, não acontecem com muita frequência.

As coisas ficam um pouco mais complicadas quando nosso SNA responde ao nosso stress diário da mesma forma que responderia à ansiedade e ao terror de ser atacado por uma criatura selvagem. Ele não percebe a diferença!

Então, em vez de regressarmos ao modo de relaxamento (através da ação do sistema nervoso parassimpático) e libertar as energias de sobrevivência após a situação de perigo ter passado, não conseguimos sair desses estados de stress elevado.

Ao vivermos vidas sob stress constante como vivemos atualmente, acabamos presos no "modo de sobrevivência", levando o nosso metabolismo a armazenar energia traumática nos músculos, órgãos e tecido conjuntivo circundante e impedindo o retorno ao estado de equilíbrio.

O nosso corpo não é uma máquina. É um elemento da natureza, vivo e interativo. Traumas passados e aspetos sombra não estão apenas cativos na mente, mas também no corpo físico. Curar e criar novas vias neuronais requer observação consciente e uma compreensão profunda das relações entre ambos, mente e corpo. Como reagem a situações que provoquem respostas emocionais e como interagem com o ambiente. Por exemplo, alguma vez te apercebeste do que acontece no teu corpo quando estás com raiva de alguém? Quando sentes ciúmes? Como o batimento cardíaco ou a postura responde aos teus pensamentos?

Desde que entrei nesta aventura de desconstrução das diferentes camadas do meu ego, houve vários aspetos que trouxe para a minha observação consciente e que me permitiram trabalhar na criação de novas crenças. Um dos aspetos com grande impacto na minha vida foi a necessidade de ser ouvida e vista pelo que realmente sou e penso, o que me levou a criar este blog em primeiro lugar.

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Eu costumava sentir-me afetada por pessoas firmes e autoconfiantes que pareciam "mais fortes" do que eu e sem qualquer receio de dececionar os outros. Via-as como pessoas presunçosas e vaidosas e costumava fazer comentários depreciativos com pares e dentro da minha própria cabeça.

Levei um tempo para perceber que estava, de fato, a ver naquelas pessoas o reflexo de mim mesma. A sensação de irritação ou incómodo na presença dessas pessoas foi uma chamada de atenção para que esses aspetos, existentes na sombra do meu subconsciente, viessem ao de cima.

Desde a adolescência, tenho vindo a reprimir a minha necessidade visceral de expressão autêntica – verbal, emocional e criativa – na tentativa de agradar àqueles em meu redor e encontrar reconhecimento e conexão emocional (mais sobre a minha luta com a autenticidade em Non-self finds Bulimia)

Ainda me sinto afetada pelos mesmos tipos de personalidade, mas integrar esta sombra permitiu-me apreciá-los e até ser inspirada por eles, em vez de me sentir inferior e tomar atitudes partindo do meu ego ferido.

Também precisei de aprender que ser mais autentica não significa não me importar com o que os outros pensam. Significa abraçar a vulnerabilidade e entender que vou sobreviver às críticas.

Quando deixamos de nos importar com o que as pessoas pensam, perdemos nossa capacidade de conexão. Quando nos deixamos definir pelo que as pessoas pensam, perdemos a capacidade de estar vulneráveis.
Se rejeitarmos todas as críticas, vamos perder feedback importante, mas se nos subjugarmos ao ódio, o nosso espírito fica esmagado. É uma corda bamba, em que a resiliência à vergonha é a barra de equilíbrio e a rede de segurança em baixo são uma ou duas pessoas nas nossas vidas que nos ajudam a distinguir a realidade das críticas e do cinismo. Para me lembrar que, trabalhar para permanecer aberto e, ao mesmo tempo, manter os limites no seu lugar vale a pena o risco e a energia gasta.
A dignidade e o valor próprio são direitos de nascença.
— Traduzido do original, por Brené Brown

 4. COMO INTEGRAR A SOMBRA E MUDAR A REALIDADE

Embora o este trabalho não seja um processo linear, não é preciso muito planeamento para começar. Precisas essencialmente de vontade de mudar e viver uma vida melhor, e o compromisso de desenvolver a observação consciente dos teus triggers, de como reages emocionalmente aos eventos na tua vida (mesmo os mais pequenos). Vais aprender a tornar-te atento ao teu diálogo interno, à voz ou vozes que que produzem constantemente pensamentos na tua cabeça.

Algumas coisas que podem ajudar:

  • Aprender a focares-te em ti e criar um ambiente seguro – faz de ti uma prioridade e encontra espaço e tempo para o autocuidado; descansa – dormir é essencial; experimenta um banho longo, com um óleo essencial ou uma massagem uma vez por mês; reserva um tempo bem definido para ti e para fazer algo que gostes (nem que seja meia hora para ler um livro, ou dez minutos para uma meditação) – sê claro com os familiares de que é um tempo sagrado e necessário para ti; mantém o teu espaço seguro "limpo", seja o teu quarto, o teu escritório ou o jardim, aprende a deixar ir as coisas que não te trazem alegria – treinar o desapego das coisas materiais que não nos acrescentam valor, melhora a nossa capacidade de fazer o mesmo a outros níveis da nossa vida (relações, papéis, práticas, etc).

  • Cultiva a auto-compaixão – temos em nós todo o espectro da natureza humana, o bom e o mau – aprende a observar-te sem julgamentos; torna o perdão, a aceitação e a gratidão práticas diárias para contigo; isto também vai fazer com que te sintas mais compassivo com os outros.

  • Neuro-estimulação – mantém atividades despertem os circuitos do teu sistema nervoso, como a exposição e interação com o som (cantar, ouvir música ou simplesmente estar atento aos sons em redor 10 minutos por dia), mexer e sentir o corpo (uma atividade desportiva, yoga ou dançar), exploração da natureza ou uma qualquer nova atividade que estimule atividade neuronal (mesmo que traga algum desconforto inicial, faz parte do processo de aprendizagem).

  • Práticas de mindfulness (atenção plena) e meditação – estas práticas desenvolvem a habilidade de auto-observação, ajudando-te a encontrar o momento de pausa entre o pensamento de fazer alguma coisa e a ação em si; a observação dos pensamentos melhora a nossa capacidade de identificar padrões sombra e criar um distanciamento dos mesmos, permitindo-nos atuar a partir da nossa sabedoria interior ou intuição; também ajudam a acalmar a mente faladora, permitindo-nos encontrar dentro de nós um espaço de cura e transformação.

  • Sê brutalmente honesto contigo – enfrentar e reconhecer mentalmente os nossos lados menos agradáveis pode ser desconcertante, mas é aí que reside o poder libertador e transformacional que te vai abrir portas a um novo mundo de possibilidades e criação.

  • Escreve os teus insights – reflexões, pensamentos, descrições de situações e a perceção das emoções experienciadas; escrever facilita a observação dos nossos pensamentos e enfraquece a identificação com o ego; permite também o treino neuronal e a criação de novas crenças através da repetição e reorganização cognitiva – para saberes como iniciar a prática de journaling, espreita o meu post Journaling - beginner’s guide

Para que possamos integrar completamente a sombra, temos primeiro que aceitar todos os aspetos dentro de nós. O espectro completo, por mais difícil que seja admitir, inclui o assassino, o violador, a fraude, o mentiroso, o agressor, o ladrão, e tantos outros. As partes mais feias e sombrias da humanidade [da qual fazemos parte] precisam de ser reconhecidas com leveza e compaixão para que possamos baixar a guarda e aceitar as palavras obscuras que descobrimos em nós próprios e na humanidade. Pois na raiz de tudo está a vergonha, a dor e a culpa. Para realmente desbloquear [e ultrapassar] a nossa própria sombra, precisamos de aceitar que ela existe.
— Traduzido do original, por Lacy Philips

Cada pessoa tem o seu próprio caminho e este pode parecer inconsistente em diferentes fases. Enquanto vivermos nesta forma (física e mental), vamos continuar a experienciar situações trauma e condicionamento, mesmo que de formas mais suaves – é parte do que nos mantém unidos como humanidade e fruto das interações que estabelecemos.

O cérebro e todas as células do nosso corpo retêm sombras, traumas e memórias passadas. Em alguns casos, uma forma eficaz de ultrapassar esses bloqueios é libertar o trauma retido no sistema nervoso com a ajuda de terapias que utilizam como único foco as sensações corporais percecionadas (ou experiências somáticas).

Terapias que envolvem movimento com particular atenção na conexão e consciência corporal podem revelar-se absolutamente transformadoras e úteis para superar crenças limitantes criadas e mantidas por bloqueios emocionais. Alguns exemplos:

Mesmo que não precises de um plano específico para embarcar neste navio, mergulhar na parte obscura do oceano do teu ser pode tornar-se muito intenso e desafiador. Uma má gestão desse stress pode levar a resultados falhados ​​se for feita sem apoio e orientação adequados.

Procura um terapeuta ou guia especializado se achares que o processo está a tornar-se demasiado difícil para lidares sozinho. Esta é uma jornada exigente, e ter alguém que te permita espaço e presença é fundamental para manter este trabalho ao longo do caminho.

Vais sentir que incorporaste a tua sombra quando começares a fazer coisas que achavas que não eras capaz de fazer, talvez algo que antes te irritava noutra pessoa! Vais olhar para o mundo e os outros de uma forma muito mais gentil à medida que começares a entender que eventualmente todos agimos do subconsciente e que, na maioria das vezes, as pessoas nem sabem por que estão a fazer ou a dizer o que dizem.

Então vais sentir a expansão, a reconfiguração neuronal de uma nova perceção de ti que se fará sentir a um nível mental e físico. Não vais voltar a identificar-te com o medo ou a crença limitadora que antes existia para te proteger, pois já não vais precisar mais dessa proteção. Escolheste trazer à parte luminosa de ti (à tua consciência) pedaços do teu verdadeiro eu. As mudanças na tua vida virão a seguir.

Depois de alguns anos a fazer psicoterapia, a pegar e a largar práticas de minfulness e meditação, comecei a sentir-me mais responsável pelo meu próprio equilíbrio. Quando percebi que eu sou o mestre da minha própria realidade, tornei-me mais ativa no meu trabalho interior e entusiasmada com a perspetiva de me conhecer e compreender cada vez mais.

Fiz algumas experiências com técnicas somáticas, abracei a prática do yoga e inscrevi-me por um ano no To Be Magnetic – um programa com vários workshops e ferramentas (muito journaling, exercícios práticos e meditações guiadas indutoras de estados hipnóticos) que me ajudaram a reconhecer padrões comportamentais, a entender as suas origens, a curar feridas infantis e a incorporar algumas das minhas sombras. Pessoalmente, foi absolutamente transformador e teve um impacto brutal em muitas áreas da minha vida. 

Nos últimos dois anos, tenho explorado novas áreas de conhecimento e aprofundado meu caminho espiritual. Mais recentemente, abracei o desenvolvimento da minha intuição e sabedoria interior e estou momentaneamente a terminar o curso de instrutor de breathwork.

Nem todas as etapas são fáceis e bonitas. Desvendar traumas passados e incorporar partes feias da humanidade traz muitos momentos de medo e luta interna, pelo menos para mim. Mas também trás uma sensação inestimável de libertação e fortalecimento.

Agora eu vejo a dedicação às minhas sombras como uma forma de autocuidado para toda a vida, de curar as minhas feridas e superar as minhas resistências. Com estas ferramentas, tenho aprendido a aparecer na vida com mais autenticidade e a não ter medo de me sentir vulnerável - a “aceitar que as coisas podem correr mal e, mesmo assim, seguir em frente”.

Sou grata pela possibilidade de ter sempre mais para descobrir e expandir.

Estás a perguntar-te de poderias beneficiar de trabalhar sobre a tua sombra?

Na minha opinião, se és humano, nasceste e foste criado numa sociedade ocidental, então muito provavelmente sim! Mas podes descobrir por ti próprio, respondendo às seguintes perguntas *:

  • Estás a experienciar uma reação emocional repetitivamente a um dado evento e não consegues chegar ao fundo do porquê?

  • Sentes-te invejoso, inseguro, defensivo, crítico ou confrontador?

  • Vês potencial em todos os outros ao teu redor, mas não em ti mesmo?

  • Sentes-te carente ou a agir de acordo com padrões antigos?

  • Dás por ti a agir de formas que não parecem estar de acordo com quem tu és?

  • Tem a subtil (ou não) sensação de estar a viver a história da tua família?

  • Tens um comportamento quando sentes que deverias ter outro?

Se respondeste "sim" a qualquer uma destas perguntas, então podes vir a surpreender-te com o enorme potencial de criatividade e transformação que está por detrás das tuas sombras.

Espero que tenhas encontrado algum valor nesta leitura e que possa servir-te como um convite para abraçares ativamente e com curiosidade os porquês e comos de seres como és.

Este não é um trabalho de curta duração. Mas vai trazer-te benefícios intermináveis.

A integração das partes perdidas de nós mesmos permite que nos tornemos inteiros novamente.

* Perguntas retiradas do workshop Unblocked Shadow, uma das ferramentas do To Be Magnetic Manifestation Pathway.
** The Body Keeps the Score: Brain, Mind, and Body in the Healing of Trauma é um livro de 2014 por Bessel van der Kolk sobre os efeitos do trauma psicológico.

Linques úteis:

  • https://www.nicabm.com/trauma-courses/

  • https://tobemagnetic.com/

  • https://yourholisticpsychologist.com/

  • https://alexandertechnique.com/

  • https://psicossomatico.pt/index.php/pt/somatic-experiencing

  • https://conexoes-em-movimento.com/

Lyon, I. "The Power of Neuroplastic Healing," https://irenelyon.com/free-resources-2/

Rugnetta, M.. "Neuroplasticity." Encyclopedia Britannica, September 3, 2020. https://www.britannica.com/science/neuroplasticity.

Physiopedia contributors, "Neuroplasticity," Physiopedia,, https://www.physio-pedia.com/index.php?title=Neuroplasticity&oldid=261308 (accessed March 21, 2021).

"Shadow (psychology)." Wikipedia, Wikimedia Foundation, February 28, 2021, https://en.wikipedia.org/wiki/Shadow_(psychology)